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Corrida maluca

Corrida de aventura é o nome dado ao esporte que consiste basicamente em sair de um ponto qualquer do planeta e chegar a outro.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h11 - Publicado em 12 fev 2011, 22h00

Renata Ursaia

Quinta-feira, véspera de feriado, 8 da noite. Toca o telefone. É Mônica. Quando a conheci, numa festa na semana anterior, ela me contara sobre sua participação na EMA na Amazônia (EMA, embora seja a sigla de Expedição Mata Atlântica, é o nome de uma prova realizada a cada ano num lugar diferente do Brasil). Parecia uma experiência incrível e, num momento súbito de empolgação (devia estar tocando uma música muito boa), eu disse que adoraria participar. Foi com base nessa imprudência minha que a Mônica resolveu me ligar. Uma das etapas do Circuito Brasileiro de Corridas de Aventura aconteceria em Bertioga naquele sábado. James Souza, navegador da equipe dela, precisara viajar na última hora e o time não poderia correr incompleto. Depois de ligar para todos os esportistas que conhecia, Mônica ficou sem escolha e me convidou.

E, o mais incrível, eu aceitei. “Legal, amanhã às 5h30 da manhã a gente passa na sua casa”, ela disse. Perguntei se eu não precisava levar nada especial. “Não. Você tem capacete de escalada, né?” “Hmm, mais ou menos.” “Cobertor de alumínio?” “De alumínio acho que não.” “Colete salva-vidas?” “Preciso dar uma olhada”. “Tudo bem, eu tenho tudo reserva. Até amanhã.” Eu tinha acabado de pôr todo o sossego do meu feriado a perder. Comecei a sentir dores nas costas, pontadas no joelho e estafa muscular. Pensei a noite inteira em desfazer o mal-entendido. Mas o fato era que, apesar de não entender o motivo, eu queria ir.

Corrida de aventura é o nome dado ao esporte que consiste basicamente em sair de um ponto qualquer do planeta e chegar a outro. Por dias e noites ininterruptos, as equipes atravessam regiões inexploradas, orientando-se por bússolas e mapas, usando os mais diferentes meios de transporte, desde as velhas e boas pernas até caiaques, bicicletas e camelos. Os membros de cada equipe – três a cinco pessoas de ambos os sexos – devem passar juntos pelos postos de controle. Vence a equipe completa que primeiro cruzar a linha de chegada. Se uma pessoa fica pelo caminho, a equipe não pode prosseguir.

Tudo começou na Nova Zelândia, no início da década de 80. Praticantes de corridas nas montanhas começaram a adicionar outros esportes à modalidade, como a escalada, o rafting, o mountain bike e a canoagem. Em viagem ao país, o francês Gérard Fusil gostou da idéia e resolveu organizar a primeira prova oficial de corrida de aventura. Assim nasceu a Raid Gauloises, em 1989, com percurso de 315 quilômetros. Desde então outros países criaram corridas de aventura, como o Eco-Challenge dos Estados Unidos, o Elf Autenthique na França e a EMA no Brasil. Em maio deste ano, 13 anos após a primeira corrida, a Raid Gauloises realizou sua décima-primeira edição, no Vietnã, com 50 equipes percorrendo nada menos que 1000 quilômetros. Cada prova é completamente diferente da outra, adaptando-se às condições do lugar.

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A habilidade de pilotar camelos pode ser vital no Marrocos, mas não vai servir para muita coisa na Patagônia, onde vale mais saber desviar de coelhos alegres numa descida de bicicleta. Mas, qualquer que seja o local, a principal capacidade exigida é a de superar limites. Afinal, muitas das provas duram mais de uma semana, sem folga para comer ou para dormir (a de Bertioga, da qual participei, levou só um dia).

Segundo Mônica Carvalho, aquela que me convidou para a prova, quando alguém da equipe, exausto e faminto, com bolhas nos pés, perdido no mato, falava em desistir da EMA da Amazônia, os outros imediatamente respondiam: “Vamos descansar meia hora, depois a gente conversa”. De meia em meia hora, a equipe ia se reanimando até cruzar a linha de chegada, após seis dias e seis noites no meio da floresta, andando, remando madrugadas inteiras, nadando entre botos, pedalando no escuro. A equipe de Mônica tinha como finalidade “apenas” completar a prova. Mas quase que nem consegue começar a disputa da EMA, porque, assim como aconteceu na prova de Bertioga, faltava um componente para completar o time.

Foi aí que tocou o telefone de José Maria Câmara Júnior, juiz do Fórum de São Caetano do Sul, sedentário e amigo – mas amigo mesmo – de James, o navegador da equipe. E assim Zé Maria deu a maior prova de amizade da vida dele, topando participar na raça – como eu em Bertioga. “Tive que comprar todos os equipamentos e tirar os certificados em cima da hora”, diz Zé. O EMA, assim como outras provas internacionais, exige uma extensa lista de equipamentos obrigatórios, além de certificados de cursos de rapel, rafting, primeiros-socorros. “Quando chegamos em Manaus, dias antes da largada, imaginei que ficaríamos na piscina descansando”, diz Zé. Mas todo o tempo é gasto em preparativos. Além da mochila, as equipes têm direito a um contâiner, transportado pela organização para os postos de controle.

É lá que ficam as bicicletas, a comida e os equipamentos de reserva. Além de terem de organizar tudo antes, os membros das equipes são testados nas habilidades requeridas para a prova. “Quando foi finalmente dada a largada eu já estava exausto”, afirma o juiz.

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Nos dois primeiros dias, Zé Maria foi em silêncio, sem reclamar, mas também sem conseguir saciar a fome comendo miojo cru e gel energético sabor baunilha. No terceiro dia, ao ver um helicóptero pela primeira vez, não agüentou. “Eu vou embora”, disse. Por sorte, havia bem ao lado uma bica gelada caindo sobre uma pedra com formato de poltrona, em frente a uma paisagem maravilhosa. “Zé, senta aqui, daqui a meia hora a gente conversa”, disse James. Zé Maria sentou na rocha, com a água caindo por cima, e foi acalmando. Acabou desistindo de desistir. “Depois desse dia eu mudei”, afirma. A cada posto de controle pelo qual a equipe passava, os organizadores faziam festa, inclusive os que perderam a aposta – sim, havia um bolão secreto de que o time de Mônica não duraria um dia.

Já para as equipes que competem pela liderança, o tempo é precioso. Por esse motivo, o médico Leonardo Gontijo, 39 anos, que chegou em quarto lugar no EMA Amazônia com a sua equipe, confessou ter desenvolvido uma técnica inovadora de fazer o número 1 – xixi – com a bicicleta andando. “E sem me molhar”, afirma Leo. E o número 2? “Ah, para o número 2 tem outra técnica mas eu não posso revelar porque é um segredo da equipe.” Bom, talvez seja melhor não insistir. “Posso apenas dizer que envolve papel higiênico”, diz. Ainda bem.

Artigos de luxo como papel higiênico e escova de dente têm sua importância avaliada de acordo com o peso. Mesmo o espaço para a comida é limitado. Um item estratégico secreto que as atletas da equipe Atenah – um time só de mulheres que nunca deixa de levar um monte de cremes para as provas – acabaram revelando é a pizza. Silvia Guimarães, Karina Bacha e Eleonora Audrá, as componentes da Atenah, compram pizzas na noite anterior à largada e socam-nas enroladas na mochila. Foi movida a margherita que a Atenah, reforçada por Alexandre Freitas e José Pupo, completou em oitavo lugar a Raid Gauloises deste ano. “Não dá para passar 12 dias comendo gel”, diz Silvia, conhecida na equipe como Shuby. Além da pizza, a alimentação básica é organizada em saquinhos. Cada kit diário contém barras de carboidratos, barras protéicas, pílulas de potássio, vitaminas, isotônicos em pó.

E dinheiro, muito útil nas passagens por casas e vilas. Leo conta que, no Marrocos, sua equipe se esqueceu de pegar o gel – que vem em tubinhos, como aqueles xampus de amostra grátis. Por azar, nessa etapa a equipe se perdeu e passou um dia e uma noite sem comer. De manhã, ao chegarem em um vilarejo, tentaram se comunicar para pedir comida. Os marroquinos acharam estranho aqueles seres com roupas de lycra e bandeira do Brasil na mochila. Só quando Leo botou um ovo usando uma pedra é que tudo se esclareceu. Graças à sua penosa interpretação – e aos gols de Romário e Bebeto na Copa de 1994, famosíssimos na região –, os “atores” ganharam um prato com ovos cozidos e pão quentinho.

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Assim como a fome, a administração das horas de sono é um fator decisivo. Em uma prova de seis dias as equipes dormem, em média, uma hora e meia por noite. Às vezes, ficam até 48 horas sem dormir. Um trecho de trekking com muita subida é feito mais rápido durante a noite do que debaixo de sol. Já pedalar no escuro pode não valer a pena, melhor descansar até a manhã. São questões táticas que dependem de planejamento e autocontrole. Mas tem horas em que o corpo se recusa a seguir planos. Não é incomum alguém dormir no volante da bicicleta e despertar estendido no chão, após um tombo.

“O corpo responde a tudo”, diz Shuby. Traduzir essas respostas e respeitá-las é a melhor tática de resistência. “Se a pessoa está com muito sono, continuar acordada é pior”, afirma Alexandre Freitas. Isso vale também para problemas físicos. Um atleta que não trata de uma dor de barriga ou de uma bolha no pé pode prejudicar a equipe, pois o problema tende a piorar. Segundo Alexandre, não há grandes riscos para os atletas que se hidratam e se alimentam com freqüência. “O maior perigo é alergia”, afirma. Reações alérgicas a picada de insetos podem ser fatais no meio do mato ou do deserto. Para emergências como essa, as equipes levam um aparelho que emite, por sinais de rádio, sua localização exata determinada por satélite e imediatamente chama socorro. Ao acioná-lo, o time é desclassificado.

Mas, afinal, para que tanto sofrimento? É o que eu me perguntava logo depois da largada da prova de Bertioga. Depois de um dia inteiro de preparação estudando o mapa, arrumando as mochilas, analisando a massa muscular dos concorrentes masculinos, estávamos nós remando em barcos infláveis junto às outras 79 equipes. Os barcos eram para duas pessoas e nossa equipe de quatro meninas foi dividida em duas. Denise, minha dupla, e eu embarcamos e começamos a remar contra a corrente em direção ao canal. Mas o bote, quando não rodava, navegava no sentido contrário. Minutos depois, não tínhamos sequer atravessado a linha de largada. Pelo contrário, ela ficava cada vez mais longe, lá na frente. Levamos uma hora para cruzá-la.

Muito tempo depois, tive a brilhante idéia de irmos pela margem, carregando o barco. Encostamos o bote e, na primeira pisada, minha perna afundou até a coxa no lodo fedorento do mangue. Demorou bem para sairmos de lá. Felizmente, não estávamos em último – uma família japonesa acelerava atrás de nós.

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Depois de um dia inteiro enfrentando percalços desse tipo, conseguimos nos distanciar da concorrência oriental. Finalmente avistamos, do outro lado de um canal, a cerimônia de premiação. Pelo jeito não constávamos entre os classificados. Mas estávamos chegando, exaustas e felizes da vida, debaixo de um céu cor de laranja. Já estava escuro quando telefonei para minha família, do orelhão da praia. “Cheguei, estou viva, foi uma ótima experiência, mas se algum dia eu falar em ir de novo vocês por favor não deixem”, disse. Após o ritual mágico banho-comida-cama, pegamos a estrada de volta para São Paulo, rindo muito da corrida. E, claro, planejando a próxima.

Frases

Em maio, os participantes da Raid Gauloises tiveram que correr mais de 1 000 km

Não há tempo nem para comer e dormir. Às vezes, o corpo pede arrego

Para saber mais

Na internet

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Raid Gauloises – https://www.raidgauloises.com

Expedição Mata Atlântica – https://www.ema.com.br

Corridas de Aventura – https://www.corridasdeaventura.com.br

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